Nos bons e velhos tempos em que as artes guerreiras japonesas ainda serviam para “impôr a paz” com uma violência despida de preconceitos e, portanto, sem grandes considerações a propósito do conceito de Harmonia e sem grandes preocupações a respeito da saúde física do oponente (por essa altura designado, e muito bem, por “inimigo”), uma expressão havia para, no Karate, designar um dos objetivos centrais do combate: Ikken Hissatsu – “um golpe, uma morte”.
Takaatsu Nishimura, na sua discussão sobre “O Karate Moderno”, explica que “uma das características principais do Karate de Okinawa original [To De] era começar por imobilizar o adversário, transformando-o num alvo fixo, para depois o incapacitar com um único ataque”.
Na formulação do responsável pela apresentação do To De ao Japão, Gichin Funakoshi, o conceito aparece expresso na prática do Ippon Kumite – um único ataque, uma única defesa e um único contra-ataque, todos eles realizados com total entrega do corpo-mente, como se outra oportunidade não houvesse.
Razões históricas acabaram por transformar esta prática, em que o conceito de controle não existia e levou freqüentemente a resultados muito desagradáveis, a transformar-se progressivamente no modelo competitivo atual (em que um árbitro avalia os efeitos virtuais de uma técnica mais ou menos controlada e anuncia a sua decisão favorável gritando “Ippon!”).
Esta transformação em direção ao paradigma desportivo marca, quanto a mim, o princípio do fim do Budo (se é que tal coisa existe ainda...) e, para os mais otimistas, a sua “evolução” em direção à noção de “desporto de combate”.
Infelizmente, o que aqui está em causa não é a perda de “eficácia” no combate (que a passagem do Bu Jutsu ao Budo tornou, de certa forma, irrelevante), mas algo bem mais importante – a perda de “instrumentos” essenciais à evolução do Budoka.
Vem esta reflexão a propósito de alguns hábitos, nefastos mas freqüentes, que tenho observado nos tapetes “Aikidokas”:
Um, Uke ataca de forma diferente da prevista, Nague pára a sequência e “manda” atacar da forma “correta”;
Dois, Nague engana-se na execução, pára a a sequência e “manda” atacar de novo.
Este tipo de procedimento nada tem de errado, num contexto em que a prática seja encarada como o aperfeiçoar de coreografias destinadas a tornar-se cada vez mais belas, até à pseudo-perfeição final.
Mas o aspirante a Budoka teria, na minha opinião, todo o interesse em abordar a prática de forma diferente: o Budo é a propósito de situações-limite, não a propósito deste dia-a-dia ilusoriamente descansado em que imaginamos haver sempre segunda oportunidade para corrigir um erro ou “dar a volta por cima”.
Uma palavra mal colocada, no tempo ou no espaço, pode significar o fim de uma amizade. Uma iniciativa que só leve em conta, os desejos do “agente” e se esqueça do contexto (ou seja, do “Outro”) pode significar o fim de uma carreira. Uma decisão que ignore os avisos dos que “já passaram por lá” pode significar o fim de uma Vida.
Aceitar, no Dojo, a situação tal como ela se coloca (independentemente dos erros do Uke) e levá-la até ao fim (independentemente dos erros do Nague) pode proporcionar “insights” valiosos, não só para a prática do Aikido mas também, e na linha do que António Galrinho diz sobre a importância do levar o Aikido para fora do tapete (ver “A Atitude na prática do Aikido”, neste site), para a evolução do próprio praticante como Budoka e, sobretudo, como pessoa.
E portanto, se o Uke se engana e faz Gyaku Hanmi em vez de Ai Hanmi Katate Dori, aceitemos alegremente o Gyaku Hanmi e respondamos, na mesma, com o Irimi Nage ordenado pelo professor ! E, se ficarmos momentaneamente confusos com o erro do Uke e a nossa resposta tiver um momento desordenado, recuperemos rapidamente a compostura e transformemos o Irimi Nage noutra coisa qualquer !
Em Budo não há segunda oportunidade – aqui e agora é tudo o que há, todo o território que temos, todo o Espaço que sobra, todo o Tempo que resta.
Na verdade, o Uke-que-se-engana e o Nague-que-se-confunde são a expressão imediata e vivida da própria Realidade. Perder esses preciosos momentos de Verdade e pura e simplesmente “apagá-los” fingindo que o “rewind” é possível é, no mínimo, dramático.
Evidentemente, é ao praticante (professor ou aluno) que cabe definir as suas próprias opções, tanto como assumir as consequências que daí resultem. Mas que seja pelo menos feita uma séria reflexão sobre a coincidência entre o que se deseja e o que se pratica. Talvez repentinamente se descubra, como alguém uma vez disse, que “Deus está nos pequenos detalhes” , e os pormenores insignificantes do treino se tornem, afinal, nos mais decisivos .
fonte: Internet